Pular para o conteúdo

Respirando móveis – carta a Gabriel Orozco

Abandono

Prezado Orozco,

Aqui, até o lixo é escasso e pobre.

É diferente na cidade do México?

Copiei sua fotografia de Manhattan. Entre uma coisa e outra, tudo é lixo. Preciso melhorar as tonalidades.

Os ricos consomem objetos de baixa durabilidade e os pobres não conseguem recebê-los nem mesmo em suspeitos atos de caridade. A cidade é nova, menos de cem anos. Os móveis de jacarandá ou mogno desconhecem esta terra perdida no meio do país onde o sol e a chuva são bençãos ou maldições. Não há meio termo.


O sol esturrica o solo, onde nascem apenas as mais resistentes das plantas. Os tons de bege marrom escuro e marrom avermelhado dominam a paisagem e são enfrentados apenas pelo azul do céu e pelos ipês irreverentes e sem folhas, teimam em florescer rosas, amarelos e brancos que se salpicam no céu e sobre o chão rude.
Nessa terra escasseiam até mesmo os móveis de pinus tratado. E, de todo modo, minha vida nômade me impede de possuir quase todos os objetos solitários que encontro na rua. Obsessão.


Não posso alcançar as nuvens. Nunca vi uma neblina. Você deve conhecer a neblina, viajado que é. Eu tenho curiosidade com essa nuvem humilde que desce do e se oferece ao chão. Mas isso também é fonte dos meus medos. Nessa cidade áspera, até as nuvens tem uma qualidade aguda, cortante. Não são cheias e densas como as nuvens das pinturas e as que vejo nos transmissores. São delgadas e ossudas.


Fugi do assunto novamente. Quando vi algumas de suas num catálogo descartado ou esquecido no banco do ponto de ônibus (pense na ironia), logo entendi seus procedimentos e me alimentei do sentimento de não estar só, embora esteja, evidentemente. Quero lhe dizer que minha cabeça se mantém baixa na esperança de encontrar algum despojo (acho bonita essa palavra) útil ou belo. E, no entanto, quase nunca sou agraciada. Os móveis de celulose prensada padecem nas calçadas, nas praças e nos terrenos baldios. Como não chove, eles se degradam aos poucos. O sol calcina e anula aquela cola que mantém os fragmentos juntos. O vento seco corrói as carnações, a cada dia um pouco. Depois de alguns meses resta uma espécie de triste esqueleto. Essa matéria industrial, milhares de vezes transformada, se dispersa no ar. Por isso respiramos nossos móveis, as narinas desertificam e depois sangram, os pulmões adquirem uma qualidade cada vez menos maleável. Morremos de pulmões empedrados. Quando os parentes vão retirar do cemitério os ossos do defunto, encontram, além deles, já enfraquecidos e esfarelentos, os pulmões intactos. Quando isso começou a acontecer as famílias se assustavam e tinham dúvidas sobre o que fazer com aquele estranho objeto que dispensava o crânio da tarefa de representar o morto. Depois foram se acostumando, até que os pulmões viraram objetos de cultos. Colocam-no em um altar e aí se constrói uma galeria dos defuntos. Os de crianças são os mais raros. É preciso ter vivido algumas dezenas de anos para que a petrificação aconteça. Exceto com as crianças que trabalham nas caldeiras. Essas podem adoecer e morrer mesmo antes de uma dezena de anos.


Também os tubulares têm o mesmo destino que o meu: a rua. Eu catei duas cadeiras dessas lá para casa. Arrumei o estofo do acento, Cobri com retalhos de chitão e até que lhe assentaram bem embora as flores exuberantes do tecido briguem um pouco com o aço duro do espaldar e das pernas. De todo modo, tem me servido para as refeições e para receber visitas, embora sejam proibidas nesse época do ano.


Por estes dias vi dois sofás, algumas gavetas, a casca de uma máquina de lavar roupas, um tv de tubo, um urubu morto e um pequeno papagaio também morto. Pensam que faltou-lhes água.


Meus vizinhos acreditam que o lixo seja semente, que, em contato com a terra, nasça, floresça e frutifique.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *