Querida Lygia,
Vi sua foto logo cedo. Suas mãos envoltas em um saco plástico cheio de ar. Contra uma das quinas do saco, uma pedra equilibrava-se.
Eu descia a rua fervilhante de lixo, naquela madrugada desértica. Os sacos de lixo se acumulavam e alvoroçados, os cachorros abocanhavam cada um deles a procura de alguma delícia descartada. Foi o Neco, já lhe falei dele? – que veio rua acima a meu encontro com uma coisa entre os dentes. Parecia feliz, alimentado, rabo balançando feito limpador de para brisa dos carros antigos. Bons dias de costume e ele balançou a cabeça empurrando o focinho nas minhas mãos. Oferecia o que trazia. Era uma revista antiga. O homem é o suporte do meu trabalho, anunciava a reportagem. Pois bem, cedo.
Logo cedo.
Mais tarde, de volta.
Como que guiada por você, enchi um saco plástico transparente, aparentemente limpo, retirado do fundo de uma gaveta. Esvaziei os pulmões no saco que se tornou meu terceiro pulmão. Cheirei, reconheci meu hálito pouco saudável. Úlcera. Foram algumas vezes enchendo sem consegui lacrar o impertinente, ou melhor, o incontinente. Enquanto girava a boca do plástico, o ar escapava contente por não ficar cativo e retomava sua forma de vento. Não tenho aquelas maquininhas de vedar plásticos. O desafio era soprar o saco, girar rapidamente a ponta como se fechasse uma rosca mantendo o ar dentro e depois dar um nó na ponta.
Deve ser assim encher balões. Conseguia, vez ou outra, um desses descartados nos lixos das festas de outras crianças. Mas já estavam cheios. Quem teria exalado o ar dentro daquelas bexigas? Você pensou nisso? Duas diversões em um só objeto. A primeira, a óbvia: jogar aos céus e observar o azul devolver a coisa em lenta volta à terra plena de objetos agudos, tormento dos balões. A segunda era imaginar os donos dos ares ali aprisionados: de um pai, uma mãe, um irmão ou irmã mais velha, uma empregada doméstica, um intermitente terceirizado?
Embora clamassem para mim sua liberdade, sadicamente eu os deixava murchar para ver as cores suaves se transformarem em cores densas, fechadas, decididas. Saco cheio, mas não totalmente. Vedei com o nó. Coloquei a pedra na ponta. A pedra subia à medida que minhas mãos forçavam as paredes do saco para dentro. Foi quase automático: o saco enredou a minha respiração. Ritmo. E tudo funcionava em um mesmo compasso: as mãos, os braços, o saco, a pedra, a respiração. Amplitude. A pedra subia, eu inspirava, a pedra descia, expirava. Experimentei fazer lentamente, muito lentamente, para que o plástico não fizesse barulho. Minhas tentativas fracassaram e logo minha respiração passou a ter som plástico. Um órgão vivo em minhas mãos, inflando, esvaziando.
Cedi a você. Agora não posso mais. Os materiais são muito difíceis e específicos. A verdade é que, se for adiante, vou me perder. Era esse seu desejo, sei bem. Ainda assim, temo cair num abismo sem fundo e sem saída, onde as coisas flutuam, vagam e não têm lugar próprio, nem utilidade, onde meu corpo, coisa entre coisas, se esgarça e perde unidade. Já me ocorreu. Naquele ano eu morri.
E, no entanto, estou curiosa com essas coisas penduradas em uma cabeça, esticando-a para frente, a partir do rosto, e para trás, um rabo enorme, uma cauda de lobo pesada, sem agilidade. Por que a cabeça? Por que não as pernas, os sexos, as barrigas? Imaginei enormes culhões que chegam ao chão e seguem sendo arrastados, felizes por agregar as coisas nulas do mundo, os tocos de cigarro, cocôs secos dos bichos abandonados, os pedaços solitários de brinquedos, as lascas de madeira, os guardanapos usados, os pregos entortados e enferrujados. Os despojos recolhidos e reunidos em imensos sacos da criatura lúgubre com poderes divinos.