Tenho uma fixação nas nuvens.
Desde que me mudei para Goiânia o céu substituiu, para mim, o mar em sua grandiosidade intimidante, em sua potência calma ou furiosa. Mais azul, amplo e intenso do que em outros lugares em que vivi, o céu do Centro Oeste se impõe sem que morros ou montanhas o interrompam. Ato terapêutico, olhar para cima tornou-se aquele momento em que percebo a pequena dimensão da história humana e da minha finita existência. Talvez por isso os crentes olhem para o céu em busca do divino.
Distinta da paisagem goiana, os morros dominam a paisagem da cidade do Rio de Janeiro. Assim, eles se sobrepõem ao céu, alargam o tempo que levamos para encontrá-lo ao erguer a cabeça. É no horizonte dos mares e das baías que encontramos o céu próximo à altura dos nossos olhos. Os recém libertos, desprovidos de terra e de trabalho foram acolhidos pelos morros. Desde o fim da escravidão os morros recebem os destituídos de propriedade e de saber formal, de diploma com o qual poderiam angariar algum trabalho melhor remunerado. O morro acolhe, em suas entranhas, os exilados do asfalto.
Nicolas Antoine Taunay pintou, em 1816, uma vista superior, a partir de um dos morros do Rio de Janeiro. No casario abaixo, uma cena se repete desde a chegada dos primeiros africanos até hoje. Pessoas negras são vigiadas por um homem branco fardado que, displicentemente, lhes dá as costas, enquanto frades, acima, conversam, observam e entretêm-se sobre a paisagem. A ordem visual explicita ou mimetiza a hierarquia social.
Cabeças de gado são conduzidas pelas ruas coloniais. Suas patas levantam a poeira que repete, abaixo, o movimento das nuvens, acima.
Ao fundo, embarcações são parcialmente encobertas pela neblina. O Rio de Janeiro evidenciado: as embarcações comerciais e escravagistas são o pano de fundo nublado, velado, de tudo que se ergue em terra. Uma geopolítica se evidencia nesse velamento.
Observo a imagem do computado. Imprimo. Amplio. Imprimo mais uma vez em qualidade alta (segundo as definições da impressora). Nada suprime o sentimento de distância de Taunay, daquela imagem. Acreditei, inicialmente que eu deveria estar frente a frente com essa obra para poder falar e escrever sobre ela. É uma exigência clássica, hegemônica da história e da crítica da arte que a presença diante da obra é requisito para sua apreciação.
Então eu desejava mais: ver de perto, observar as pinceladas sutis, penetrar a trama do tecido que suporta a tinta fluida. Testemunhar, nos esgarçamentos do tecido, o envelhecimento da tela, no craquelado e escurecimento das tintas o registro do tempo. Procuro a reprodução maior, mais pixels na tela do monitor. De pouco adianta. Atenho-me ao que tenho: uma imagem destituída da profundidade do óleo sobre tela. Atenho-me ao que tenho: a distância.
Frustrada, resolvo desenhar o céu de Taunay. Para desenhar é preciso observar com uma acurácia maior que a contemplação desinteressada. Convenço-me que é o mesmo que me aproximar. Os tons me escapam, as sobreposições de cores características da pintura a óleo são impossíveis de alcançar com o lápis de cor. Ou eu desconheço a técnica mais adequada.
Eu desejo alcançar aquelas nuvens.
PS: É necessário reconhecer a perpetuação da violência colonizadora e escravizadora no coturno que pesa sobre o pescoço de uma pessoa preta. A patroa supostamente branca faz as unhas. O menino negro morre enquanto a mãe passeava o cachorro da patroa em meio à pandemia. A mãe negra, obrigada ao risco da covid, perdeu seu filho para que o pet da patroa pudesse respirar. O céu de Taunay continua a pesar mais sobre a cabeça de alguns do que de outros.