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dia 10/09/2043 – o homem dos culhões enormes

Com seu saco enorme entre as pernas, arrastando no chão, este homem anda nu, todos os dias, desde a madrugada até a primeira luz da manhã, quando escasseia a curiosidade alheia. Contam que perdeu toda a família, a esposa, a mãe e três filhas, em um incêndio. Desde então anda nu. Não sente frio nem calor. Come os restos que a cidade provê. Defeca e mija quando e onde pode. Seu corpo exige o mínimo. Duvida-se mesmo que reste ali alguma vida. Foi preso umas tantas vezes por atentado ao pudor. De toda o sofrimento que se pode recolher em um cárcere, um único lhe restava, a impossibilidade de realizar as tarefas que trariam Amanda, Laura, Heloísa, Iara e Ana à vida. Depois dessas tantas vezes desistiram. Compreenderam, finalmente, a força descomunal daquela obsessão. De madrugada o homem caminha por Pretérita, vaga entre as rodovias, ruas, becos e vielas deixando, por vezes, um rastro de sangue.  

Ontem, pela primeira vez, o vi. A face era ilegível, as rugas pareciam rotas de um mapa enlouquecido, onde todos os caminhos levam a lugar algum. Os braços pendiam para a frente, inertes, mortos. Antes de tudo vinha a cabeça vigorosa, atada a um pescoço retesado, de músculos aflorados. O crânio parecia querer livrar-se dos ombros e do tronco, dada a emergência que o guiava. Fazia grande esforço para arrastar aqueles culhões enormes, que, em um tempo passado, para ele imemorial, lembravam as sementes plantadas no ventre sua esposa, de onde brotaram as meninas.

Desde as mortes, os culhões cresciam. Acomodava ali pedras cada vez maiores, de modo a esticar a pele. Qualquer incômodo ou agonia amainava a sua dor maior. Quando chegou o tempo, acoplou aos culhões gigantes duas pás que ganhou de um ambulante piedoso. Iniciou sua busca.

Seguia na esperança de que seus culhões imensos recolhessem, das ruas dessa cidade irrespirável, as fuligens das filhas dispersadas pelo vento áspero. Dispensava grande esforço, depois das caminhadas, separando as fuligens do restante do lixo. Escolhia dentre o universo magnífico de vestígios, aqueles que, por algum motivo, faziam aflorar memórias felizes, ou mesmo as infelizes. As cinzas mais claras, segundo sua classificação, pertenciam à filha menor. À medida que escureciam pertenciam às duas outras filhas até chegar a mãe, mais negra que a noite.

Quando reunia quantidade suficiente, à noite, em seu barraco, o braço esquerdo, visto que era canhoto, retornava à vida. Depois de acondicionar as fuligens em recipientes dourados, agarrava o pênis e movia a mão em movimentos de pistão de um velho automóvel, com força e ódio. Tinha pressa que aquele membro anestesiado derramasse a cola que reuniria as fuligens e, ao fim da saga, antes de sua morte, o restituiria às suas amadas.

Ele as esculpia, um pouco a cada dia.

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