Vou me curar, repito a mim mesma. Acredito nisso com a fé de uma ateia.
Mas o que seria a cura? Onde se coloca na trajetória entre doença e saúde? E aí, é claro, outras perguntas intervém: o que é a doença? quando ou como seríamos saudáveis?
Sei de duas coisas: ambas contraditórias:
- tenho um forte desejo de cura; e, no entanto, não reconheço isso que dizem que é a doença: um estado de entropia, de desorganização do ser. Então, haveria um ser em sua plenitude, íntegro, integralmente organizado, cujas partes operam em absoluta harmonia? Doença não seria apenas um nome para a mudança, para o devir em uma forma talvez mais aguda, interpelativa, exigente? Se assim é, o que seria a cura? Uma ilusão? A ilusão de um ser que não se deixa vazar, fluir?
- O devir instalou-se em meu corpo e faz suas exigências. É preciso tratá-lo, dar-lhe ouvidos, senti-lo, porque ele não tolera o desprezo. Sua única exigência talvez seja essa. É como o Brasil que arde, queima. Há que lhe dar os ouvidos. Grita. Será possível reconhecer o sentido dos gritos? Os gritos, veja bem, os gritos, o urros, não são as palavras bem comportadas, enfileiradas uma depois da outra – como em uma parada militar – em busca de dar contornos e forma ao mundo para que seja manejável, administrável.
Assim, o que escuto – estarei escutando errado? – é que é preciso que eu escreva, escreva sobre aquilo que grita. Para domar o grito? Não. Para incorporar Exú e abrir caminhos para o grito. Escrever para dar passagem. Provisoriamente me parece que é isso. Uma passagem, uma transmutação, uma metamorfose.
Minha doença é grito. Ela é minha propriedade, como demarcaria o pronome possessivo “minha”? Não. Ela é um traço em mim, uma marca. Ela é compartilhada, me atravessa. Sim, pode me destruir mas não é minha. De modo que, em não sendo minha, preciso reconhecê-la como um rio, o rio de Heráclito. Há algo sobre o rio de Heráclito: ele passa, ele é a eterna passagem.