Colocam-me em cima de um muro. Suponho que fosse um muro alto. Não me lembro, ao certo. Equilibro-me ali. Tenho por volta de três anos, talvez menos. Do outro lado, meus pais pedem que salte para eles, prometendo me amparar antes da queda. Eu não pulo. Recuso-me a pular. Resoluta, mantenho-me empoleirada. Nada acontece. Era um treino.
Nasci clandestina. Meus pais eram opositores da ditadura, ambos fichados, procurados. Nasci filha de proscritos e fugitivos. Nessa condição era preciso aprender a lutar e saber a hora de fugir. Aprendi cedo. Pequena e frágil, considerei que a luta não era para mim. Embora tenha lutado (o que quer que essa palavra signifique) muito, conheço bem mais a tecnologia da fuga. A fuga tornou-se parte de mim. Mas nesse dia me recusei. Lutei, resisti. A quê? Não sei exatamente. Lutei para rejeitar a luta como forma de vida?
Décadas depois, meu pai adoeceu de uma demência. DCL – Demência de Corpúsculo de Levy. Havia se casado com outra mulher que não minha mãe. Teve outro filho, além de mim e da minha irmã.
As duas notícias vieram juntas, ou quase. Meu pai havia ganho o direito à reparação concedido pela Comissão da Anistia. Meu pai estava com Parkinson, primeiro diagnóstico.
Minha irmã – com apoio da minha mãe e da minha avó, mãe do meu pai –, iniciou uma campanha de difamação contra a minha madrasta: ela estaria matando meu pai para se apossar dos valores da reparação.
Nem mesmo o diagnóstico definitivo (demência de corpúsculo de Levy), redigido por um dos melhores neurologistas do Rio de Janeiro, as demoveu da ideia e da campanha difamatória que se alastrou na família e para além dela, para amigos e companheiros de partido (meu pai era filiado ao PT desde a sua fundação no estado do Rio de Janeiro). Eu fazia doutorado em Florianópolis, trabalhava em alguns freelas e viajava com frequência para ajudar meu pai, minha madrasta e meu irmão. Sobretudo, eu queria estar com ele.
O que significava “estar com ele”? Testemunhar sua partida, talvez. Ouvir sua voz cada vez mais frágil, recalcitrante como a um oráculo. Sobre tudo, não me afastar disso que é a vida, a vida em seus extremos: nascer e morrer. Essa foi uma lição que meu pai me ensinou, não pela boca, mas pelos gestos. A lição paterna: a antítese da vida não é a morte. Suas últimas palavras para mim: não dobrar o espírito. Decifra-me. Era como se me dissesse: decifra isso, o espírito que não se dobra é a vida. O desejo que pulsa é a vida. Sim, entrelaço desejo e espírito. E assim ele morreu, embora ateu, com uma fé imensa na vida, e na capacidade humana para o sublime e para o horror. Era um homem fascinado pela nona de Bethoveen. Como podia que algo tão belo tenha vindo à vida?
Era difícil lidar com a doença, mas talvez ainda mais com o ataque familiar. Meu pai morreu e eu, paulatinamente, me afastei da minha família. Isso foi em 2012. Não sei quantos dias se passaram de sua morte, um mês talvez, concorri a uma vaga na Universidade Federal de Goiás. Sem saber como, fui aprovada em primeiro lugar. Depois de uma prova, peguei um mototáxi, presumo ter cochilado no trajeto, enfiei o pé na roda, e quase amputei parte do calcanhar. Duas cirurgias e quatro meses sem pôr o pé no chão e fisioterapia foram necessários à recuperação. Ainda assim o passo cambaleava. Meses depois, fui morar em Goiânia para lecionar história da arte. Considero adequado que ser um tanto desequilibrada, dada a fragilidade do meu pé esquerdo: a arte comporta o desequilíbrio, o abraça, o deseja.
Na esteira desse, os abalos não cessaram: as ruas loucas de 2013, a aterrorizante eleição de 2014, o golpe em 2016, a prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro em 2018. Entrei em luto profundo. Tive que erguer uma pirâmide, porque junto a meu pai, com ele, morreram minha família e meu país. Enchi uma caçamba de cinzas que ainda não terminei de dispersar. Como nuvem, essas cinzas voltam em tormentas, furações e me envolvem inteira.
Amparava-me meu companheiro, este que veio de um encontro sexual inesperado e explosivo e de um amor tecido aos poucos, com os fios da amizade. Amarava-me meu filho, nascido em 2015, em meio a muitos tumultos. Um nascimento enfim. Uma promessa, enfim, enfim o amor irrestrito, incondicional, arrebatador, imenso, depois de tanto desamor e tantas perdas.
Em 2019, diagnóstico de câncer de mama. Em 2024, novo câncer, ou metástase do anterior, ainda não sei.
Uma culpa enorme me invade. Peço desculpas a todos e qualquer um por estar doente. Aos mais próximos, a desculpa se reitera infinitamente. Poupo apenas meu filho. Não foi bem assim. Descubro em terapia, entre as disparatadas, mas muito concretas associações: as desculpas eram endereçadas a meu pai, por não ter pulado do muro.