Eram sempre grandes os espaços – amplidão que eu admirava nela mais que tudo – entre os pés ligeiros. Desta vez entrou em casa com uma passada curta como se sob a sola dos pés, quanto maior o ângulo entre as pernas, maior a ameaça da insinuação de uma fissura ávida por abismo. Os pés evitavam distância do chão como que para evitar que lhe fugisse num repente temeroso. Perguntou-me como foi o dia num tom ríspido e dissimulado que conheço da eternidade, mas numa veemência trêmula e nervosa que eu ignorava.
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Algumas horas atrás, diante de milhares de câmeras e olhares, fiz importantíssima e inaudita declaração:
Na condição de presidente do Banco Central desta brava nação declaro que, a despeito de nossos hercúleos esforços, à moeda deste país o mercado atribuiu, persistentemente e durante meses, valor nulo. Como se tornou inescapável para as autoridades financeiras, diante da constatação de fato tão constrangedor, não podemos mais fugir desta realidade, não podemos mais recalcar esse fato. Meu dever com esta pátria de gentes diversas e coração uno é o de não recalcitrar e acatar, mesmo que com pesares alargados, que esse agente de origem praticamente natural, o mercado, anulou o valor de nossa moeda. Qualquer nota, qualquer moeda que leva nossos símbolos patrícios, as faces de nossos heróis e as correspondentes certificações de autenticidade valem, qualquer que seja o número nelas gravado, um insistente nada. Lutamos agora, com o coração febril, para que uma anulação não signifique, em decorrência, outra, muito mais importante e vital, a desagregação dos nossos – se é que ainda se pode usar esta palavra – valorosos laços de cidadania e nacionalidade, porque estes, meus caros compatriotas e concidadãos, devem ser mais renitentes e robustos que aqueles que ligam uma mãe a seus filhos.
A moeda, este artifício, este fetiche que o homem com seu engenho, astúcia e arte, forjou e aperfeiçoou ao longo dos séculos, para facilitar as trocas dos produtos de árduo trabalho, como que por uma catástrofe natural ou gesto divino, chega agora ao seu valor mais misterioso. Sim porque, valendo zero, a moeda – este objeto que beira, ele mesmo, em suas características sensíveis (um pedaço de papel apenas) a quase nada, com a qual se contava o valor de todas as coisas, animadas e inanimadas, materiais ou imateriais, humanas ou não – anula o valor de todas as outras coisas. Desta feita, qualquer coisa, ser ou até mesmo evento, vale zero, vale nada. O futuro que temos a frente contém alto grau de indeterminação.
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Desviando o olhar, rapidamente, respondi, difícil, e como foi o seu? Não pôde responder. Ela me fixou o olhar, vazio e ao mesmo tempo tenso, por um instante disposto a eternidade. Tomou um fôlego exasperadamente longo como se fosse, dizer muitas coisas, pôr todas as vibrações do corpo em verbo, falar tudo, mas não alcançou; as palavras entupindo-lhe as veias e pulmões sem saída nem ordem deixaram seu rosto vermelho do sangue. E tentando ser rápida, mas embaralhando os pés, fugiu da minha inquietante presença.
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Dias depois, um envelope branco deslizou sob a porta:
Nem sei como começar, é um turbilhão, como se todas as coisas, os pensamentos se escapassem de sua ordem normal. Minha mágoa é tanta. Minha dor é tanta. Esses dias todos a cada segundo tentei reencontrar o nexo da pessoa que conheci, aquela que amo profundamente e esta que anunciou e ao anunciar produziu uma desordem tal. Minha arte, aquela que você tanto admirava, aquela que nos aproximou dois mundos tão diferentes, mundos que quase se repeliam de tanta incompatibilidade. Mas seu amor à arte, achei que esse era o estatuto de nosso vínculo que eu, ingênua, achava inquebrantável. Seu amor à arte. E agora você, que anuncia o valor nulo de toda moeda, não anula também nosso amor, não torna também vazia a minha arte? Que você tivesse amantes, fizesse orgias, quisesse experimentar vários mundos alucinados das drogas, isso eu lhe perdoaria. Que você me cuspisse na cara, conspurcasse nosso leito com os mais sádicos caprichos, me cagasse o corpo para satisfazer vis prazeres, isso eu lhe perdoaria. Que você cafetinasse nossos filhos, isso talvez eu lhe perdoaria. Mas anular o valor da minha arte, como pôde? Sim, porque depois de sua declaração todas as coisas perderam suas equivalências. Como pôde? Não entendo.
Você era lindo, com tanta posição, tanto poder, uma pessoa humilde e tão culta. Nossas viagens à Índia em busca de um mundo de paz, um mundo sem convulsões. Mas eu não havia percebido arrogância encoberta por manto tão bem ajustado, tão perfeito de retidão, de quietude interior. Mas eu não havia percebido o mal que se insinuava em cada gesto seu que só agora, retroativamente, sou capaz de detectar. Toda a imagem que fazia de você, nossos momentos felizes, nossa completude, tudo agora ficou contaminado por um ato apenas. Mas vejo agora, meu engano se ilumina e faz ver que seu discurso Escola de Chicago pleno das certezas das suas estratégias era um sinal que ignorei. É mexer aqui apenas uns decimais no câmbio, na expedição das moedas, o mundo inteiro aos seus pés, não é? É disso que você gosta é isso que você quer. Todo o mundo submisso aos seus caprichos, às suas planilhas, aos cálculos da sua infâmia máquina.
Eu fiquei afásica por muito tempo, como se, ao anular o valor da moeda você houvesse anulado também toda a ordem que uma sintaxe necessita. E não é isso mesmo? Minha arte agora se equivale a qualquer coisa, foi diluída inteiramente no burburinho do caos da vida, de uma vida sem valor, sem valores. Você premeditou? Você viu as conseqüências da anulação da diferença de todas as coisas, bem e mal, verdade, mentira, amor, ódio. Como agora podemos valorar as coisas, as ações, as pessoas? Você me tornou nada. Pior, tornou nula toda a minha arte. Nunca o perdoarei.
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Tempos depois, no mesmo tipo de envelope, respondi:
Meu amor é tanto, minha dor é tanta. Você não compreendeu nada? Sou apenas um servo, meu maior desejo o de completa anulação no dever. Minha posição tem apenas a aparência de poder. Você se enganou quanto ao luxo em que vivíamos, nossas viagens. Nossa paz vinha da minha servidão. Sirvo a um deus caprichoso e cheio de artimanhas. A declaração, com tão vastas consequências, não foi um capricho meu, muito menos minha vontade e premeditação. Era inescapável. Eu não escolhi, apenas e como sempre, fui instrumento. E nossos mundos não eram nada estranhos, muito menos incompatíveis, como você pensa, eram complementares. Meu cálculo e sua arte se aproximaram não porque nosso amor unia formas tão díspares de existência. Justo o contrário, nosso amor era essa complementaridade. Você nunca percebeu? Sua arte agora se equivale a qualquer coisa, é verdade. Uma moeda apagada que as pessoas passam, caladas, umas às outras. Também as binaridades se dissipam e o julgamento torna-se dificultoso porque nosso julgamento se baseava em valores. Valores partilhados. Como eu, apenas com a pronúncia dessa nulificação, pude pôr tudo abaixo? Não seria esse nada, então, a matéria silenciosa de nossa existência?
[*] Este texto é dedicado ao meu pai, de quem roubei a ideia do anúncio de uma moeda de valor zero, e com quem conversei longamente sobre a possibilidade.