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Carta a Borges

Querido Borges,

Você saiu ontem sem me avisar, como sempre. Foi a uma das longas andanças andarilhas? Foi caçar imagens? Foi ouvir os novos rumores da cidade? Foi atravessar os túneis subterrâneos para mapeá-los, encontrar uma saída esquecida pelo tempo e coberta pelas eras? Por que não me diz?

Fui à sua casa porque precisava lhe falar com urgência. Desde que você me contou das nuvens, fiquei obcecada.  Sei que não acredita que elas voltarão, sei que pensa que foram exterminadas inapelavelmente. Discordar de você me exaure. A sua descrença me atemoriza. É entretanto uma necessidade que eu ignoro de onde vem. Ela apenas existe, límpida e manifesta. Creio que talvez elas voltem ou que já existam do outro lado do muro. É uma fé (não se aborreça; sei que abomina as crenças) mas tenho indícios fortes e é sobre isso que gostaria de lhe contar. Fiz incontáveis imagens e gostaria de mostrar apenas três, para não lhe aborrecer. Escolhi as que me pareciam mais evidentes. Mesmo sendo Pretérita essa cidade abandonada entre o vir a ser e o já foi, entre construção e relíquia, essa cidade exilada do mundo, em minhas próprias andanças diurnas (as suas são sempre noturnas, não é?) encontrei vários indícios e sinais que elas regressariam a essa terra tão carente.

Veja por você mesmo. Não são essas três fotos prenúncios de que as teremos novamente para romper com esse maldito azul homogêneo, claustrofóbico e opressor? O inferno deve ser azul. A primeira – veja bem e deixe seu ceticismo um pouco de lado, acompanhe-me, por favor, sem críticas contundentes – encontrei no asfalto essa forma já gasta, fofa e peluda. Não se parece uma nuvem lutando contra um céu cinza e mesmo contra a natureza dessa cidade? Veja as folhas como se embaraçam nela. Notou que possui dois olhos e me observava? Queria me dizer algo. E esse volume destacando-se do betume, libertando-se? Não é possível que você não veja.

Nessa outra foto um tanto de sementes acumuladas no terreno baldio? Essa brancura imponente entre essa pobre vegetação que insiste em nascer nessa ausência de umidade. Não vê que são essas sementes de nuvens que fornece um mínimo de orvalho para que afundem suas raízes nessa terra esgotada?

E essa marca clara no asfalto, formando uma paisagem? Não te dize nada?

Por favor Borges, se não acredita nas nuvens, acredite em mim. Sinto a umidade em meus ossos. Elas virão.

Logo que chegar, venha tomar um chá.

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